Em março de 2014, o governo de Santa Catarina anunciou que, a partir de 2019, passaria a contratar seus projetos em BIM. Assim, o Estado tornou-se o primeiro do Brasil a determinar prazo para implementar a metodologia e buscar um padrão de qualidade internacional nas obras públicas.
Um dos protagonistas desse processo foi Rafael Fernandes Teixeira da Silva, coordenador de Projetos Especiais da Secretaria de Planejamento do Estado de Santa Catarina e do Laboratório BIM (LaBIM-SC), criado pelo governo estadual para estudar o tema.
Ele também palestra sobre o tema em todo o Brasil e é professor na pós-graduação em BIM no Instituto Brasileiro de Educação Continuada (INBEC). Além disso, participa do Grupo de Compras Governamentais do Comitê Estratégico de Implementação do BIM, cujo objetivo é propor a Estratégia Nacional de Disseminação do BIM no governo federal.
Nesta entrevista, Silva, que é engenheiro de Produção Civil e de Materiais, além de especialista em Direito Ambiental e Urbanismo, compartilha conosco sua visão sobre o mercado da construção civil e os avanços na implementação da metodologia BIM.
Acompanhe!
Perfil da Construção – Rafael Fernandes Teixeira da Silva
SIENGE – Como engenheiro de Produção Civil, qual é sua percepção sobre a indústria da construção atualmente?
Estou formado há 19 anos. Desde então, percebo que a indústria da construção civil avançou pouco na busca da qualidade de produtos e processos. Falta preocupação com gerenciamento de estoque, fluxo no canteiro de obras e gargalos de produção, por exemplo.
Acredito que, devido à baixa qualificação da mão de obra e da ausência da cultura de gestão de qualidade, exista uma lacuna na etapa de execução.
Podemos observar isso na implantação do BIM. Atualmente, a metodologia é facilmente aplicada na área de projeto e de operação. Nessas fases, há engenheiros e arquitetos capazes de utilizá-la. Já na etapa de execução da obra, a falta de capacitação e de planejamento prejudica a aplicação da tecnologia.
SIENGE – De acordo com a Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos de Construção Civil e Demolição (Abrecon), cerca de 60% dos resíduos sólidos das cidades vêm da construção civil. Como gerenciar e diminuir esse passivo ambiental?
Os resíduos da construção civil deveriam consistir apenas em embalagens. A indústria gera muito resíduo sólido por ineficiência de processos.
Teoricamente, os resíduos da construção civil deveriam consistir apenas em embalagens, a serem destinadas conforme a Resolução CONAMA nº 307. Em uma situação ideal, não haveria desperdício. A indústria gera muito resíduo sólido por ineficiência de processos, informação validada pelos dados da Abrecon.
SIENGE – Como a metodologia BIM pode contribuir para o planejamento urbano?
A modelagem da informação pode auxiliar de forma efetiva o planejamento das cidades se estiver associada aos Sistemas de Informações Georreferenciadas (SIGs). Por meio dessa integração, seria possível projetar obras públicas dimensionando com mais precisão os impactos na vizinhança e na mobilidade urbana. Também poderíamos prever a necessidade de áreas de expansão que acompanhassem o crescimento populacional.
São questões complexas que requerem soluções simples, mas não podem ser tratadas de maneira simplista. Nesse sentido, a modelagem da informação daria a fundamentação necessária para a elaboração dos projetos, permitindo a integração de diversas áreas do conhecimento.
SIENGE – Você acha que as construtoras estão preparadas, ou se adaptando, para atender à exigência do uso de BIM?
Acompanhando o mercado e participando de eventos do setor, pude perceber que, por enquanto, o mercado da Região Sul está mais preparado em relação ao resto do Brasil. Acredito que, independentemente da possibilidade de descontinuidade no setor público, os catarinenses compreenderam o valor dessa iniciativa governamental.
Um fato ilustra isso: sou professor de uma disciplina em um MBA em BIM. Apesar de ser um programa de pós-graduação oferecido em muitas capitais do País, Florianópolis é a única cidade que está na terceira turma – e logo abrirá a quarta. Por outro lado, há estados em que já foram lançadas inscrições para o primeiro curso, e não houve alunos suficientes para fechar a turma.
SIENGE – Para os engenheiros e arquitetos, que benefícios podem ser constatados, de forma imediata, com o uso do BIM?
A primeira grande vantagem percebida com a modelagem da informação é a antecipação de problemas que só seriam identificados na etapa da execução da obra. Imagine ter de modificar algo que já está construído.
Demolir uma parede ou um pilar custa tempo e dinheiro. Já fazer uma alteração na fase de projeto é muito mais rápido e barato.
Pelo fato de a modelagem virtualizar o real, a indústria está começando a exigir, dos projetistas, essa capacidade de antecipação de conflitos. Isso favorece o trabalho colaborativo e a interoperabilidade, rompendo a cultura de compartimentalizar competências, tão comum na construção civil.
SIENGE – Como isso se reflete no pós-obra, quando o imóvel chega ao consumidor?
Geralmente, quem faz projeto não dialoga com quem executa, e vice-versa. Depois, ambos abandonam a obra, ou seja, não participam do pós-obra. Por isso, muitas vezes, o comprador ou gestor ficam sem saber como manter o imóvel e exigir garantias.
Com os dados de um As Built em BIM, perguntas comuns como “com que frequência deve ser feita manutenção e a troca de equipamentos?”, “o ano em que terei maior desembolso coincide com meu maior fluxo de caixa?” poderão ser facilmente gerenciadas.
Infelizmente, ainda são poucos os empresários e investidores que se preocupam com a operação do pós-obra. Isso gera um custo muito alto para o Brasil.
O BIM também exige, no sentido da importância da operação e manutenção, que quem vai operar a obra colabore no desenvolvimento do projeto. Esse profissional tem a visão do pós-obra e pode contribuir muito para a qualidade do empreendimento. Com base em sua experiência, ele pode evitar prejuízos, como a instalação de equipamentos mais baratos, mas que consomem o dobro da energia e se depreciam muito rápido.
Infelizmente, ainda são poucos os empresários e investidores que se preocupam com a operação do pós-obra. Isso gera um custo muito alto para o Brasil. Mas, com a modelagem da informação, a tendência é que isso mude.
SIENGE – Você acha que as construtoras estão dispostas a investir na qualificação de seus funcionários para trabalhar com a modelagem da informação?
Para isso, precisamos mudar alguns padrões. Histórica e culturalmente, damos pouco valor ao trabalho. Isso remonta ao nosso processo de colonização e à prática da escravidão. Valorizamos o produto, mas não a atividade laboral necessária para produzi-lo.
Como reflexo disso, muitos empregadores ainda pensam que o funcionário custará mais caro à medida que for se qualificando. Então, resistem em investir na capacitação de seus colaboradores. Esses gestores percebem o lucro como um valor fixo, e qualquer despesa extra é vista não como investimento, mas como prejuízo.
É preciso modificar essa visão simplista e levar em consideração o impacto que o aumento da capacidade técnica tem na rentabilidade da empresa. Se essa análise for feita, perceberão que a relação de custo-benefício, sem dúvida, vale a pena.
SIENGE – Você participou da elaboração do Caderno de Apresentação de Projetos em BIM do Estado de Santa Catarina. Quanto tempo durou a elaboração desse material? Como foi a receptividade após o lançamento?
O material foi desenvolvido por um grupo de profissionais que se preocupa com a qualidade dos projetos e das obras públicas entregues aos cidadãos. Cito especialmente o engenheiro Wesley Cardia, que foi o primeiro a falar sobre BIM de forma efetiva.
Iniciamos a elaboração do conteúdo em novembro de 2013 e, em março de 2014, entregamos a primeira versão. Entre julho e outubro de 2014, trabalhamos na segunda versão, no formato de um guia para orientar as empresas. Esse documento, que é anexado aos editais de projetos em BIM do governo catarinense, está agora em sua terceira versão.
A receptividade foi muito boa. O BNDES e a Fiocruz, por exemplo, já utilizaram o Caderno como referência para a contratação de projetos em BIM. Além disso, ele vem sendo fonte de consulta tanto para o mercado quanto para a academia.
SIENGE – Quais os principais benefícios da adoção da modelagem BIM no setor público?
Continuar usando ferramentas de CAD é manter o status quo, no qual a má aplicação dos recursos públicos e a judicialização dos processos são recorrentes.
Muitos países já entendem o BIM como estratégico para o seu desenvolvimento. No Brasil, a crise aumentou a necessidade de que as obras públicas sejam executadas com eficiência, e a modelagem da informação torna isso possível.
Já as ferramentas de CAD não permitem incorporar os dados e conhecimentos necessários à gestão adequada dos projetos, da obra e do pós-obra. Ou seja, continuar usando ferramentas de CAD é manter o status quo, no qual a má aplicação dos recursos públicos e a judicialização dos processos são recorrentes.
A modelagem da informação ainda é um dos grandes instrumentos para atingirmos a Governança, tão discutida no setor público. Espero que os gestores políticos percebam os benefícios – e portanto, a necessidade – da adoção de BIM.
SIENGE – Qual é a diferença entre implementar a metodologia BIM no setor público e no setor privado?
Enquanto no setor privado a implementação pode se dar de forma muito mais rápida, no setor público existem alguns entraves. Muitos questionam a segurança jurídica do BIM, pensando no quão restritiva a tecnologia pode ser. Mas não precisamos exigi-lo em todos os projetos. Podemos eleger aqueles de maior impacto. Foi o que aconteceu no caso do Instituto de Cardiologia, o primeiro projeto em BIM de Santa Catarina.
Imagine se o projeto do hospital tivesse sido feito em CAD e houvesse problemas de compatibilização que só fossem percebidos em obra. Poderia haver um atraso de dois a três anos para a entrega. Quantas vidas serão perdidas por esse atraso?
Com isso percebemos o impacto que a Arquitetura, o Urbanismo e as Engenharias têm sobre a qualidade de vida, seja ele positivo ou negativo.
SIENGE – Como as universidades vêm absorvendo o uso do BIM?
Ainda precisamos vencer a inércia da academia. Há vários professores que entendem BIM somente como um software que limita a criatividade. Mas esquecem que 70% do tempo gasto em “projeto” em CAD é só para representação, ou seja, só usamos 30% do tempo no processo criativo. Isso, a meu ver, é frustrar a criatividade.
No processo de projetos em BIM, a maior parte do tempo está na busca da melhor solução. A representação é mera consequência desse esforço.
Apesar de ser inevitável, a mudança não pode ser abrupta, isto é, não podemos exigir, imediatamente, o uso pleno de BIM. Em primeiro lugar, porque não temos formação suficiente para atender à demanda gerada. Em segundo, porque precisamos amadurecer gradativamente para perceber os benefícios, do contrário iremos criar uma enorme expectativa que pode ser traumática para o setor.
SIENGE – Na sua avaliação, em quanto tempo um profissional pode aprender a utilizar o BIM com assertividade?
Nos trabalhos desenvolvidos no LaBIM-SC, tenho observado que seis meses são suficientes para esse aprendizado num nível adequado do uso de BIM para antecipação de interferências entre as disciplinas e uso dos materiais de construção.
O uso pleno de BIM talvez seja uma utopia, porque obrigaria a um amadurecimento de todo o setor da construção, da área de TIC [Tecnologias da informação e Comunicação] e de Normatização e Padronização. Por isso, gosto de pensar que os 20% do que podemos realizar com BIM podem ser responsáveis por 80% do benefícios.
Entretanto, creio que é mais importante aculturar o BIM do que impor seu uso. Nesse sentido, a modelagem da informação tem a vantagem de possuir uma escala de percepção de valores para quem projeta, constrói e mantém. Assim, gradualmente, o profissional vai se acostumando com a ferramenta, percebendo suas vantagens e aprofundando os níveis de uso.