Nos quase 20 anos em que atuo com comunicação para o mercado imobiliário, acompanhei centenas de debates, conversas e palestras envolvendo players do setor discutindo problemas estruturais da cadeia produtiva da construção para identificar riscos e oportunidades.
Incontáveis temas foram abordados, mas um elemento aparece de forma unânime em todas as ocasiões: a falta de integração da cadeia construtiva como causa de problemas de produtividade e qualidade.
A falta de entendimento entre os elos da cadeia produtiva da construção é um problema crônico do setor há décadas. São fabricantes que, muitas vezes:
- ignoram a realidade complexa dos canteiros, tornando-as ainda mais complexas;
- operários sem a qualificação necessária para entender diretrizes de projeto;
- projetistas que ignoram limitações dos materiais e da execução ou não conseguem conciliar ambas as pontas para traduzir em orientações de projeto;
- dentre outras inúmeras situações em que predomina a falta de comunicação adequada.
O problema permanece a despeito de algumas evoluções pontuais, como a recente ascensão da construção modular – ou, ao menos, do hype em torno dela. No entanto, esta também é vítima de um mercado formado em torno de uma cadeia caótica e que, sob o aspecto tributário, financeiro e cultural, costuma premiar a ineficiência.
Ao longo deste artigo vou discorrer sobre os obstáculos à geração de valor ao longo da cadeia construtiva e os caminhos que a tecnologia encontrou para endereçar problemas que perduram há muito tempo no setor.
Dividi esse texto em duas partes:
- Essa primeira apresenta um breve contexto sobre os problemas de comunicação que a cadeia produtiva da construção enfrenta e o poder do efeito de rede criado pelas plataformas e sua contribuição para a integração do setor. Vou, inclusive, falar um pouco sobre como a construção pode buscar inspiração no exemplo do varejo para potencializar a criação de valor agregado.
- Na segunda parte, vamos mergulhar de vez na realidade de obra. Vou comentar sobre como plataformas digitais como o Sienge estão ajudando a integrar os canteiros a partir da extração e organização de dados. Nesse ponto, vou trazer os pontos de vista de profissionais que estão em diversos pontos da cadeia, atuando como produtores, consumidores e integradores de dados de obra.
Valor agregado ao longo da cadeia produtiva da construção
No artigo “Caminhos para a Evolução da Produtividade no Brasil – transformando a cadeia de fornecedores numa cadeia de valor”, Luiz Henrique Ceotto, CEO da Urbic, aponta um caminho como possibilidade para acelerar a integração da cadeia ao sugerir a cada elo produtivo questionar dois pontos da relação comercial.
Primeiro: o que fornecedores a montante da cadeia poderiam desenvolver para agregar valor a seus produtos no sentido de melhorar a minha produtividade ou agregar valor a meus clientes?
Depois: como eu mesmo poderia agregar valor aos elos subsequentes para aumentar suas produtividades e, assim, agregar valor ao produto final?
Ao dividir o foco da melhoria entre meu negócio e os processos a montante e a jusante, toda a cadeia seria beneficiada.
O problema é que essas perguntas não são feitas e, no fim das contas, cabe às construtoras resolverem em canteiro um problema estrutural, crônico e histórico do setor. Não é à toa, portanto, que a construção figura dentre os setores menos produtivos da economia e um dos campeões em desperdício de materiais e de força de trabalho.
Contexto desafiador
Entretanto, por mais que possa haver boa vontade, fazer essas perguntas na prática – e endereçar as soluções eventualmente levantadas – pode não ser tão simples. Isso porque cada player da cadeia produtiva da construção acaba invariavelmente imerso em questões mais urgentes relacionadas à sustentabilidade do próprio negócio.
Mais do que isso, talvez o questionamento não seja nem mesmo possível no formato proposto porque na construção as relações não são lineares, mas organizadas em matriz, com decisões pontuais que impactam disciplinas diversas de projeto e, principalmente, a frente de obra.
Nesse contexto, é desafiador até mesmo saber o quê perguntar, para quem e em qual momento na linha do tempo de desenvolvimento de uma obra.
Bom, se a evolução da construção culmina na revolução digital tida como capaz de levar a produtividade para níveis bastante elevados, então ela passa, necessariamente, pelo advento das plataformas tecnológicas.
Então, que tal se essas plataformas não apenas fizessem essas perguntas, mas ajudassem a endereçar as respostas?
O poder do efeito de rede
Plataformas são elementos integradores e não precisamos pensar em tecnologia para entender isso. A plataforma de uma estação ferroviária é o ponto de partida para integrar pontos distantes e passagem obrigatória para passageiros com demandas totalmente individuais. Uma plataforma digital não é diferente.
Como explica a McKinsey:
“Plataformas são tecnologias que dão visibilidade à gestão de negócios e operações por meio de funcionalidades nativas e integração perfeita com outras tecnologias para agregar dados e controle de processos numa interface centralizada.”
Em outras palavras, a proposta das plataformas é entregar soluções de ponta a ponta a partir da construção de redes inteligentes de negócio. Vejamos:
Inclusive, é no chamado efeito de rede que reside o principal trunfo das plataformas. Ao construir um ecossistema digital cooperativo, as plataformas conseguem resolver problemas empresariais e setoriais de maneira muito mais eficaz do que uma eventual integração vertical, em modelo de cadeia linear, promovida por participantes isoladamente.
O exemplo do varejo
A gigante chinesa Alibaba, uma das maiores plataformas de varejo do planeta, parte do princípio de efeito de rede para entregar valor ao mercado e a seus acionistas. Sem nenhum estoque ou estrutura logística, a empresa, que vale US$ 550 bilhões e está dentre as dez maiores do mundo, faturou US$ 72 bilhões entre 2019 e 2020.
O que, afinal, faz a plataforma chinesa?
Ao organizar e extrair inteligência dos dados, agrega valor a cada atividade de varejo. “O Alibaba é o que se obtém quando todas as funções associadas ao varejo são coordenadas on-line numa rede ampla alimentada por dados de vendedores, anunciantes, prestadores de serviços, empresas de logística e fabricantes”, explica o presidente do conselho do Grupo Alibaba, Ming Zeng.
Então, na prática, quando um vendedor cria uma loja virtual na plataforma ele se conecta a todos os elos do ecossistema, desde a ponta de inteligência de mercado até a assistência técnica. Isso aumenta a capacidade de realizar negócios de maneira exponencial.
Em paralelo, proporciona segurança ao consumidor final, que entende a plataforma como uma curadora atenta à qualidade dos serviços prestados e com autoridade suficiente para arbitrar eventuais conflitos.
Pense no Mercado Livre, por exemplo. Você compraria um item usado de um desconhecido a 350 km de distância se não houvesse uma plataforma que garantisse a devolução do seu dinheiro em caso de problemas?
O modelo não é apenas promissor como irá dominar o mercado em pouco tempo. A McKinsey estima que estes ecossistemas de negócios integrados irão chegar a 30% de participação na economia mundial até 2025. Como hoje eles representam entre 1 e 2% da economia, dá pra ter ideia do tamanho da oportunidade.
A tradicional Magazine Luiza – ou Magalu – sabe muito bem disso e tem destinado 60% dos investimentos para tecnologia e apenas 12% para a abertura de novas lojas. Para integrar toda a cadeia por meio da tecnologia, a varejista, que cresceu mais de 1.000% entre 2015 e 2019, incluiu em sua plataforma soluções para loja digital, contratação de montadores, estoquista digital para vendedores do marketplace, acesso a 1.200 micro transportadores responsáveis pela entrega, integração com whatsapp e uma robusta aplicação de Big Data.
A estratégia de crescimento da Magalu é baseada tanto no desenvolvimento interno de tecnologias quanto na aquisição de empresas.
Para saber o que desenvolver internamente e quais tecnologias externas agregar é imperativo, portanto, desenvolver um entendimento aprofundado das nuances de cada camada do negócio.
Isso significa que a própria concepção de uma plataforma é precedida por uma intensa etapa de pesquisa de campo para mapear as dores de cada player. No caso do varejo, por exemplo, algumas das dores são:
- Falta de capilaridade – do lado dos vendedores;
- Falta de confiabilidade nesses pequenos vendedores – do lado dos compradores;
- Concorrência pulverizada – pelo lado dos grandes varejistas.
Plataformas como Magalu, Infracommerce, Mercado Livre e Amazon endereçam essas e muitas outras dores, criando um ecossistema digital poderoso em torno da demanda. Não é à toa que essas empresas estão dentre as que mais captaram valor nos últimos anos.
Certo, mas o que isso tem a ver com a construção?
É sobre isso que falamos na segunda parte deste artigo, em que eu comento sobre como as plataformas conseguem integrar a cadeia produtiva da construção a partir dos dados, tornando os canteiros de obra muito mais eficientes.
Até o próximo artigo!