A arquitetura hostil está cada vez mais presente em nossas cidades, influenciando a maneira como as pessoas utilizam e ocupam o espaço urbano. Usado pela primeira vez em 2014 em uma reportagem do jornal britânico The Guardian, esse é um termo que os profissionais de arquitetura e urbanismo, assim como o público em geral, devem entender e discutir para criar espaços comuns de qualidade para todos.
A arquitetura hostil se insere no debate contemporâneo sobre o uso do espaço urbano, que reflete uma preocupação crescente em criar cidades mais inclusivas, sustentáveis e acessíveis para todos os cidadãos.
- Como planejar e projetar áreas urbanas de forma a promover a interação social, a mobilidade eficiente e a qualidade de vida?
- Como reduzir a segregação urbana e promover a inclusão de grupos marginalizados na dinâmica das cidades?
- Como envolver os moradores de maneira ativa na tomada de decisões e no processo de design urbano, reconhecendo a importância de suas perspectivas e experiências para moldar o ambiente construído?
A busca por um desenvolvimento sustentável e inclusivo implica considerar os aspectos sociais, econômicos e ambientais do espaço urbano. Aprofundar-se nas discussões sobre a arquitetura hostil, portanto, é fundamental para contribuir para um debate mais rico. Ao longo deste texto, abordaremos exemplos práticos e discutiremos as controvérsias que cercam o tema.
O que é arquitetura hostil?
A arquitetura hostil é uma estratégia de design que visa controlar ou limitar o comportamento humano. Ela é incorporada em estruturas físicas, públicas ou privadas, para dissuadir certas ações. Frequentemente, sua aplicação é focada em evitar o uso indevido ou indesejado dos espaços.
Esses espaços normalmente empregam elementos como assentos desconfortáveis, divisórias estratégicas, iluminação específica e paisagismo peculiar, visando direcionar e moldar como as pessoas utilizam o espaço. São comumente direcionados a grupos que incluem pessoas em situação de rua, jovens, ambulantes ou manifestantes.
Quais os objetivos da arquitetura hostil?
A prática dessa estratégia de design urbano é permeada de polêmicas, com defensores e críticos. Dependendo da ideologia ou da visão de mundo, os termos utilizados para se referir a essas práticas se diferenciam.
Arquitetura defensiva
Os grupos favoráveis a esse tipo de intervenção costumam chamá-la pelo termo arquitetura defensiva. Para eles, a arquitetura defensiva procura criar ambientes que regulam o uso, a permanência e a circulação de diferentes grupos sociais. Essa abordagem arquitetônica está conectada a perspectivas que buscam equilibrar e preservar a ordem e a segurança, levando em consideração fatores como a convivência pacífica e a manutenção do ambiente.
Ela reforçaria a importância de certas regras e limites em espaços compartilhados. Na visão de seus defensores, quando espaços públicos são projetados com elementos defensivos, eles transmitem a mensagem de que é necessário manter certos padrões de comportamento para uma convivência harmoniosa.
Arquitetura hostil
Já os críticos destacam que essas medidas quase sempre resultam na exclusão de determinados grupos ou na marginalização de pessoas vulneráveis. A arquitetura hostil, como preferem chamá-la, pode ser considerada uma manifestação física de ideologias dominantes, que reforçam e perpetuam a segregação social.
Quando espaços públicos são projetados de maneira hostil, eles enviam uma mensagem clara de que certos grupos não são bem-vindos ou não pertencem àquele ambiente. Ao criar ambientes desumanizantes e opressivos, a arquitetura hostil pode reforçar as desigualdades sociais e perpetuar a exclusão de grupos vulneráveis.
Proibição da arquitetura hostil: Lei Padre Júlio Lancellotti
Em uma importante decisão legislativa, a Lei nº 14.489/2022, chamada de Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a arquitetura hostil – o uso de materiais e estruturas projetados para afastar pessoas em situação de rua de locais públicos – foi promulgada no Brasil no final de 2022. Apesar de um breve veto do Poder Executivo, que alegava potencial insegurança jurídica devido ao termo “técnicas construtivas hostis”, o Congresso Nacional reverteu a decisão.
Com a lei agora em vigor, as práticas de arquitetura hostil são oficialmente proibidas, mudando a maneira como os espaços públicos são projetados e utilizados. A lei é uma emenda ao Estatuto da Cidade e estipula que a política urbana deve promover conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade em espaços públicos, seu mobiliário e as interfaces com espaços privados. Esta decisão legislativa marca uma mudança significativa na abordagem da arquitetura hostil.
Arquitetura contra moradores de rua
O nome da lei homenageia a atuação do padre Júlio Renato Lancellotti, religioso ligado à Pastoral do Povo da Rua de São Paulo e defensor histórico dos direitos das pessoas em situação de rua na capital paulista e crítico das intervenções urbanas hostis.
Características da arquitetura hostil
O entendimento das características da arquitetura hostil nos permite identificar e interpretar suas aplicações no ambiente urbano. Os seguintes princípios estão presentes na maneira como o design e a estrutura física de um espaço podem ser usados para influenciar ou controlar o comportamento humano.
Dissuasão sutil
Trata-se do uso de elementos de design que, de maneira discreta, desencorajam atividades específicas. O uso de bancos segmentados em espaços públicos, por exemplo, desencoraja pessoas de deitarem neles, tornando o espaço menos acolhedor para pessoas em situação de rua.
Uso seletivo de materiais
Certos materiais podem ser escolhidos para tornar superfícies desconfortáveis ou inóspitas. A instalação de pedras ou blocos de concreto sob viadutos, por exemplo, podem parecer decorativos à primeira vista, mas têm o objetivo claro de impedir que pessoas em situação de rua se instalem no local.
Manipulação do layout
O planejamento estratégico de um espaço pode limitar ou direcionar o comportamento humano. Por exemplo, a disposição de cercas, muros ou paisagismo pode ser usada para restringir o acesso ou movimento em certas áreas.
Invisibilidade deliberada
Ocorre quando o design se camufla no ambiente, de modo que suas intenções hostis possam passar despercebidas. Elementos como dispositivos antiskate em bancos e canteiros são um bom exemplo disso, pois parecem apenas um componente estético, mas na verdade estão lá para prevenir que skatistas utilizem o espaço.
Exemplos de arquitetura hostil
Veja alguns exemplos de detalhes arquitetônicos que configuram, em espaços públicos, exemplos de design urbano hostil.
Bancos segmentados
Encontrados em muitos espaços públicos, como parques e praças, os bancos segmentados são projetados para desencorajar a ocupação prolongada, especialmente por pessoas em situação de rua. Isso pode tornar os espaços públicos menos acolhedores e acessíveis para segmentos vulneráveis da população.
Pinos e pontas de metal
Esses dispositivos são frequentemente instalados em parapeitos, beirais e outras superfícies planas para impedir que sejam usados para sentar, deitar ou escalar. Embora eficazes na prevenção de ocupações indesejadas, esses dispositivos podem parecer hostis e excluir grupos que buscam abrigo ou um lugar para descansar.
Muros e cercas
Usados para delimitar e restringir o acesso a certas áreas, eles podem ser eficazes na manutenção da segurança e ordem. No entanto, também podem tornar os espaços menos acolhedores e inclusivos, criando barreiras físicas e simbólicas entre diferentes grupos sociais.
Elementos antiskate
Calçadas e praças são comumente projetadas com pegas, corrugações e outros elementos para evitar que skatistas as utilizem. Embora isso possa prevenir danos à propriedade e conflitos de uso, também pode ser visto como uma forma de excluir a cultura do skate e seus praticantes do espaço público.
Sistemas de gotejamento
Muitas vezes disfarçados como elementos decorativos ou de drenagem, têm como objetivo principal dissuadir pessoas de buscarem abrigo sob essas estruturas. Através da liberação periódica de água, eles tornam as marquises incômodas que desencorajam a ocupação prolongada.
Alarme mosquito
Este dispositivo emite um som de alta frequência que é particularmente audível para pessoas mais jovens. À medida que as pessoas envelhecem, sua capacidade de ouvir altas frequências geralmente diminui, tornando o som emitido menos perceptível ou até mesmo inaudível para adultos. É criticado por afetar jovens, independentemente de seu comportamento, e animais, que podem ser perturbados pelo som de alta frequência.
Quais são os problemas da arquitetura hostil?
As críticas à arquitetura hostil são amplas e variadas, e levantam questões éticas, sociais e práticas. Uma das críticas mais comuns é que essas estratégias discriminam e marginalizam certos grupos, principalmente os sem-abrigo e os jovens, transformando os espaços públicos em áreas exclusivas e seletivas, ao invés de inclusivas e acolhedoras.
Eticamente, a arquitetura hostil é muitas vezes vista como desumana, pois suas estratégias visam tornar os espaços públicos desconfortáveis ou mesmo inóspitos para as pessoas que procuram usá-los. Além disso, a prática da arquitetura hostil pode ser considerada uma violação do direito ao espaço público, um conceito fundamental para o funcionamento das democracias urbanas modernas.
Socialmente, a arquitetura hostil contribui para a estigmatização e exclusão de certos grupos, reforçando as desigualdades existentes. Além disso, embora seja projetada para dissuadir comportamentos indesejados, ela raramente aborda as causas subjacentes desses comportamentos, como a falta de moradia ou a falta de espaços de lazer para jovens.
Consequências da arquitetura hostil
A arquitetura hostil traz uma série de consequências sociais, psicológicas e físicas que podem ser profundamente negativas para as comunidades urbanas. Socialmente, essa abordagem pode levar à exclusão de certos grupos, como pessoas em situação de rua e jovens, dos espaços públicos. Essa exclusão pode agravar a marginalização e o isolamento social já enfrentados por esses grupos, além de tornar os espaços públicos menos diversificados e inclusivos.
Psicologicamente, a arquitetura hostil pode contribuir para a criação de um ambiente urbano tenso e hostil, onde as pessoas se sentem indesejadas ou desconfortáveis. Isso pode ter um impacto negativo no bem-estar psicológico das pessoas e na qualidade geral do ambiente urbano. Além disso, essa abordagem pode reforçar estigmas sociais negativos, tornando mais difícil para os grupos marginalizados superar esses estereótipos e encontrar aceitação na sociedade.
Conclusão
A arquitetura hostil revela muito sobre as prioridades sociais e os conflitos inerentes ao design e uso de nossos espaços públicos. Ela levanta questões importantes sobre quem tem o direito de usar esses espaços, e de que maneira. É evidente que, embora a arquitetura hostil possa ser vista por alguns como uma ferramenta necessária para a gestão de espaços públicos, suas implicações éticas e sociais são profundamente preocupantes.
Esta prática, que em essência busca desencorajar certos grupos de pessoas – muitas vezes os mais vulneráveis em nossa sociedade – de ocupar espaços públicos, não é apenas discriminatória, mas também contradiz a noção de espaços públicos como locais de inclusão, diversidade e coexistência.
Felizmente, a consciência sobre as questões da arquitetura hostil está crescendo, tanto entre os profissionais do urbanismo quanto entre o público em geral. Está surgindo uma nova abordagem para o design urbano que valoriza a inclusão, a empatia e a justiça social. Exemplos como a implementação de bancos públicos mais acolhedores, a participação pública no planejamento urbano e ações legais como a Lei Padre Júlio Lancelotti, são passos promissores nessa direção.
Contudo, o combate à arquitetura hostil não deve ser apenas uma questão de design ou de legislação, mas também deve abordar as raízes socioeconômicas da exclusão e marginalização. Isso pode incluir a adoção de políticas de habitação mais inclusivas, o combate à pobreza e a desigualdade social, e a criação de mais espaços de lazer acessíveis.