Com certeza a pauta do saneamento básico é o assunto do ano em infraestrutura e na construção civil. O tema veio à tona por conta da aprovação do novo marco legal do saneamento no Senado Federal no dia 24/06/2020. Sancionado pelo Presidente Federal em 15/07/2020, ainda que com alguns vetos, deu origem a Lei Federal nº 14.026/2020.
É inegável o mérito do novo marco do saneamento, assim como a sua relevância para o Brasil. Ele é fruto de um consenso político de interesses muito antagônicos que precisaram, de certa forma, serem aglutinados.
É possível que não seja o melhor texto possível, mas seus avanços são consideráveis. Há ainda algumas arestas a serem resolvidas, como os decretos regulamentadores, vetos presidenciais e judicialização.
Neste artigo eu vou te mostrar se o novo marco do saneamento representa mesmo uma oposição binária entre o público e o privado.
O que os números do saneamento no Brasil mostram
Os números do saneamento no Brasil chamam a atenção até dos próprios brasileiros que muitas das vezes desconhecem a sua realidade. Não se pode perder de vista que o Brasil é um país com as suas idiossincrasias e tem um tecido social marcado por profunda desigualdade. Por isso, há quem sustente e com certa propriedade, que o saneamento básico é a linha que divide o Brasil da classe média do Brasil da idade média.
A realidade é esta, especialmente se considerarmos que:
- No Brasil cerca de 100 milhões de pessoas, ou seja, quase a metade da população não tem acesso ao esgoto.
- Daqueles que possuem coleta de esgoto, apenas menos da metade (46,3%) é tratado, e o resto retorna para a natureza do mesmo estado em que foi coletado.
- Nada menos que 35 milhões de brasileiros, que representa praticamente a população do Canadá, não possui acesso à água tratada.
- O índice médio do mercado nacional de perda de água pronta para o consumo é de aproximadamente 40%, o que é precificado como prejuízo anual de R$ 10 bilhões de reais. É difícil de imaginar a viabilidade econômica de qualquer empreendimento/indústria que perde quase metade do que produz. Apenas a título de comparação, a Austrália perde 7%, Estados Unidos 13%, Nigéria e Quênia 45%.
- A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que no Brasil há cerca de 15.000 mortes por ano em decorrência de doenças de veiculação hídrica, sendo 6.000 de crianças recém-nascidas.
Os dados acima mostram uma dicotomia nacional, pois ao mesmo tempo em que o Brasil é a 9ª economia mundial, no saneamento básico o país está ranqueado no mundo na posição de 117º.
Mas então qual o problema do saneamento no Brasil?
Aqui é preciso tomar cuidado para não cair no mau vezo de responder uma questão complexa com uma resposta simplista. Não obstante, regra geral as mazelas do saneamento básico no Brasil estão relacionadas a dois fatores, quais sejam:
- ausência de investimentos para a obtenção da universalização dos serviços de água e de esgoto;
- e pouca eficiência do setor.
Forma atual de prestação do serviço: companhias estaduais x contratos de programa
Grande parte do mercado de água e esgoto no Brasil é operado por companhias estaduais por meio de contratos de programa. Eles consistem na possibilidade de um ente estatal (Município) contratar com outro (Estado) por intermédio de Companhias Estaduais, a prestação do serviço de saneamento. Isso ocorre de forma não competitiva, mesmo quando ela seja viável e desejável.
Este arranjo contratual entre Municípios e Estados se perfectibiliza por meio de contratos de programa. Aliás, este é um dos temas mais discutidos (e controvertidos) do novo marco do saneamento. Afinal, ele consiste na imposição da “extinção” dos contratos de programa.
Legalidade questionável dos contratos de programa
Tais contratos podem ser definidos como uma espécie de contrato de concessão de serviço público, porém, sem ser precedido de processo licitatório. Isso está em dissonância com o mandamento da Constituição Federal, especialmente dos artigos 37, inciso XXI1 e do art. 1752. Enfim, não possuem a condição legal e constitucional determinante para serem denominados de contratos de concessão.
Por conta disso há quem sustente a ilegalidade e inconstitucionalidade destes contratos, conforme restou consignado no veto aposto pelo Presidente da República ao art. 16 do novo marco do saneamento.
O texto aprovado pelo Senado Federal previa a possibilidade de prorrogação por uma única vez dos atuais contratos de programa. Contudo, desde que as Companhias Estaduais demonstrassem musculatura financeira para fazerem frente aos investimentos necessários para a universalização do sistema até o ano de 2033. Isso está de acordo com o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB).
Estes contratos de programa em sua grande maioria operam (e operaram) com regras pouco claras de investimento, sem a existência de compromissos críveis de qualidade e investimento. Além disso, acabaram por colocar as Companhias Estaduais em uma posição de vantagem no mercado, muitas das vezes justificado pelo racional pouco transparente dos subsídios cruzados.
Pouca eficiência na entrega
Por outro lado, esta situação de vantagem fez com que várias Companhias Estaduais se tornassem pouco eficientes, permeada de valores arcaicos arraigados da história nacional. Isso inclui o patrimonialismo, personalismo, controle político e seus fisiologismos.
Esta é a realidade do setor, porém é preciso que se reconheça que há companhias eficientes, à exemplo da Sabesp. Também é preciso reconhecer que muitas das Companhias Estaduais possuem alguns excelentes quadros técnicos.
Em razão da penúria financeira enfrentada por muitas Companhias Estaduais elas estão longe de terem envergadura econômica e/ou capacidade de atração de recursos financeiros para fazer a universalização do sistema. Ainda mais nos moldes definidos no novo marco legal do saneamento, que estão estimados em R$ 700 bilhões.
Diferença absurda de custos e investimentos
Com sorte, mantido o ritmo de investimento atual, as projeções apontam que a universalização poderia ocorrer entre 2050 e 2060.
Dados das setor mostram que entre 2014 e 2017 o reajuste nas tarifas de água e esgoto praticados pelas Companhias Estaduais foi de 30,7%, ao passo que os investimentos caíram cerca de 3%. No entanto, parte significativa do aumento tarifário foi para o custeio da folha de pagamento, que representa cerca de 51% das receitas. Este mesmo dado nas empresas privadas é de aproximadamente 22%.
Atualmente apenas 6% do mercado de água e esgoto está com a iniciativa privada, por meio de contratos de concessão, precedidos, evidentemente de competição, por conta do processo licitatório, que é a regra constitucional.
Os investimentos realizados pelas empresas privadas representam 20% da integralidade do que é aplicado por todo o setor de saneamento. Uma simples regra de três mostra que as empresas privadas investem em média quase 4 vezes mais que as Companhias Estaduais.
O papel do novo marco do saneamento na abertura dos mercados
Desta forma, era evidente que os contratos de programa e as companhias estaduais eram cientes de que tinham um encontro marcado com a realidade social – necessidade de universalizar a prestação do serviço –, seja pela sua fragilidade jurídica, seja pela carência de capital para a realização dos investimentos.
Criticar este modelo de contratos de programa e envidar esforços para o fim de tais instrumentos é medida profícua para o desenvolvimento do setor e também óbvia no contexto atual. Mas não se pode esquecer que foi com este modelo que muito se avançou, especialmente na distribuição de água.
Não havia décadas atrás capital privado com apetite para investir em saneamento como existe hoje em razão do cenário macroeconômico e da ausência de um marco regulatório que trouxesse segurança jurídica para o investidor. Entretanto, como quase tudo na vida, este modelo dá sinais claros de ter esgotado o seu ciclo e o novo marco do saneamento abre o mercado para investimentos também privados no setor.
Quais as soluções trazidas pelo novo marco do saneamento
O grande vetor normativo advindo com o novo marco do saneamento é a universalização do sistema3, metas de redução de perdas, metas de qualidade. Ou seja, fazer com que todo cidadão brasileiro tenha acesso a água e esgoto tratado até o ano de 2033, com qualidade, eficiência e tarifas módicas. Este é o comando contido no plexo de normas que estão descritos no texto do marco do saneamento.
Assim, como o diagnóstico setorial mostra com clareza as dificuldades financeiras das companhias estaduais para fazerem investimentos e também para tomarem financiamentos, assim como – regra geral – são pouco eficientes na alocação dos investimentos, a saída encontrada é abrir o mercado de saneamento para players privados, sem excluir os públicos que se mostrem eficientes.
Enfim, com a aprovação do novo marco do saneamento a regra passa a ser a da competição pelo mercado. As empresas hão de demonstrar envergadura econômica para realizarem os investimentos tão necessários no setor e concorrerão em regime de igualdade. Isso vai acontecer por meio de processos de concorrência (licitação), como já previsto na Constituição Federal, porém escamoteado pelos contratos de programa.
Foco maior no cliente
Pode-se afirmar que o novo marco do saneamento tem os seus olhos voltados mais para o serviço e para o cidadão que o recebe, e menos para a empresa que o entrega.
A população mais carente é a que paga a conta mais alta pela falta de saneamento, às vezes esta conta é a própria vida, ou seja, uma conta que não tem preço. É contrassenso4 que áreas tidas por “irregulares”, como as favelas, que possuem energia elétrica, Internet, sinal 4G, TV a cabo, transporte público, não contem com saneamento básico.
Neste sentido, o novo marco regulatório do saneamento não é a dialética entre privatizar ou não privatizar, mas sim entre ser ou não ser eficiente. Pouco importa se o serviço será prestado por empresas públicas ou privadas, mas sim que efetivamente seja prestado, de forma eficiente e com tarifas módicas.
O novo marco do saneamento fortalece a Agência Nacional de Águas
Outra mudança significativa trazida pelo novo marco do saneamento é a atribuição de competência para a Agência Nacional de Águas (ANA) para emitir diretrizes regulatórias – normas de referência nacional – com o fim de tentar padronizar a regulação e os entendimentos dos contratos de saneamento.
Parte significativa das agências reguladoras do mundo está no Brasil, que só em saneamento possui quase 50 agências. Há por conta disso muita assimetria de informação e entendimento, desde regras contratuais até mesmo de critérios de aferição de equilíbrio econômico-financeiro e ajustes tarifários.
Essas divergências afetam os contratos, causam incertezas e riscos regulatórios, provocam a judicialização dos contratos e acabam por afugentar investidores. As normas de referência oriundas da ANA5 não serão cogentes e vinculantes aos Municípios ou blocos de municípios, nos casos de prestação regionalizada.
No entanto, há um forte mecanismo de incentivo para a sua adoção, que consiste na vedação de “acesso aos recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal” aos Municípios que não a adotarem.
Prestação regionalizada dos serviços
Cabe destacar também a possibilidade de prestação regionalizada dos serviços, especialmente para aqueles municípios que não se mostrem rentáveis ou porque de alguma forma compartilham infraestrutura e possuem ganho de escala com outros Municípios.
Ainda há muitas dúvidas e questionamentos acerca de como vai se operar a prestação regionalizada, ela impõe alguns desafios, especialmente de governança.
Oportunidades do novo marco do saneamento para a construção civil
O novo marco do saneamento básico abre a possibilidade de investimentos de mais de aproximadamente R$ 700 bilhões na economia nacional e representa uma grande oportunidade de negócio para as construtoras.
Aliás, as construtoras que estão de alguma forma envolvidas ou acompanham os processos de infraestrutura e a realidade do mercado, são conhecedoras da forte interação entre o público e o privado. Até mesmo as estatais, quando fazem obras de infraestrutura de saneamento acabam por contratar empresas privadas. Até por isso pode-se afirmar, sem medo de errar, que não existe uma prestação de serviço de saneamento 100% pública.
A grande diferença é que agora existe uma obrigação legal de que tanto as empresas públicas como as privadas, alcancem a universalização do sistema. E isso com certeza demandará novas obras públicas do Chuí ao Monte Caburaí e pode representar a grande alavanca de retomada do crescimento do Brasil no pós-pandemia.
Basta lembrar que os estudos econométricos estimam que para cada R$1 bilhão investido em saneamento há geração de aproximadamente 60 mil empregos.
O que o novo marco do saneamento representa socialmente
O saneamento é hoje a maior mancha social do Brasil, assim como a escravidão é a nossa grande mancha histórica. O setor da construção civil tem uma excelente oportunidade de negócio pelos próximos anos, que se justifica também pelas suas externalidades positivas, pois:
- para cada R$ 1,00 investido em saneamento, há economia de cerca de R$ 4,00 em saúde;
- cada R$ 1,00 investido em saneamento é injetado cerca de R$ 2,50 na economia.
Além disso, investimento em saneamento:
- impulsionam o turismo;
- causam valorização imobiliária;
- geram benefícios ambientais;
- reduzem faltas ao trabalho por conta de doenças de veiculação hídrica.
É chega a hora de se despedir desta oposição binária entre o público e o privado, que acabam por criar grandes abstrações, viram crenças e colocam pessoas e organizações em trincheiras diferentes. Com isso, a bipolaridade se torna um fim si em mesma e afasta-se do meio, que é entregar serviço de saneamento básico para toda a população.
Nunca é demais repetir:
Pouco importa quem vai prestar o serviço de saneamento, se ente público ou privado, o que realmente interessa é que ele seja endereçado para todos e com tarifas módicas. Serviço caro é aquele que não é prestado.
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